terça-feira, 28 de maio de 2013

O Pardal e a Maria Boneca


Título: Woman in black dress standing next to a window
Fotógrafo: Roberts Birze
Colecção: Flickr

Maria Boneca limita-se ao seu espaço de conforto habitual totalmente desinteressada das movimentações que a rodeiam, das conversas que não são as dela e dos convívios da elite estereotipada.
Sempre muito reservada, só fala se lhe dirigem a palavra, tem-se como uma menina educada, mas sempre com uma imensa vontade de manter-se surda e calada.
Os tempos de exteriorização de pensamentos e sentires estão bem lá atrás no passado. O cansaço ainda lhe pesa na alma por não conseguir fazer-se entender, mesmo junto daqueles que lhe são seus na carne e no sangue.
Habituada à incompreensão e às constantes cobranças de convívio social dentro dos padrões estabelecidos como normais, oferece resistência e remete-se sempre que pode à sua própria companhia autista.
Mas curiosamente, todos os dias, à mesma hora, a meio da tarde faz uma pausa na rotina e vai até à janela que deita vistas sobre o claustro do convento de freiras. Aproveita para pousar os olhos sobre o jardim, os quatros ciprestes que definem o perímetro de quatro lados iguais e a fonte ao meio.
O pretexto primeiro, não é a janela nem aquela tela que muda de cor conforme a rotação das estações do ano. O que a move até à janela é a presença circunstancial de um pardal que de vez em quando vem banhar-se e beber na água da fonte. Não é um pardal castanho qualquer que lhe desperta a atenção. Mas aquele pardal em particular, robusto, atrevido, audaz, desconfiado que carrega o peso de uma lágrima negra desenhada nas penas da asa esquerda.
O mais engraçado, é que sendo ela dona da sua vontade, vê a sua vontade todos os dias hipotecada à rebeldia de uma ave que nasceu livre, e livre há de permanecer até morrer. Sente-se tocada pela liberdade e pela força da natureza que aquele ser lhe é, saudade imensa de mão atada à realidade.
E quando o pardal não lhe concede visita, Maria Boneca suspira. Aquela janela cheia de vida permanece dentro dela, triste e vazia.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Fado do Disco Riscado

























Título: My Spirale World
Fotógrafo: Elena Chernenko
Colecção: Vetta


Aproxima-te, olha.
Sorri-me.
Diz-me algo simpático.
Não deu? Tenta de novo.
Reage, atreve um toque.
Sussurra-me ao ouvido
um verso bonito.
Falha? Ensaia de novo.
Desvenda o olhar.
Não te custa nada,
e a mim dá-me jeito
a alma ao peito.
Quanto ao resto do fado,
parece um disco riscado.
Não aguardes,
ensaia o outro lado,
e faz-te sentir
se queres o tango bem dançado.


domingo, 12 de maio de 2013

Sol Nascente













Título: beautiful woman exercise in woods
Fotógrafo: Milan Zeremski
Colecção: Vetta

Tenho medo de ter perder no seio da multidão
tamanha é a imensidão de gente 

que temos em volta e pelo nosso meio.
Levanta os braços bem ao alto para eu te ver,
agita a tua voz de trovão pare eu te ouvir,
e deixa-te ficar aí quedo e sereno.
Enquanto as correntes prosseguem caminho para poente,
eu quero-te comigo desde a hora do sol nascente.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Maria Boneca























Título: In the brightest hour of my darkest day
Fotógrafo:^skye.gazer
Colecção: Flickr

Sentada na cadeira de baloiço, herança de sua avó paterna, simplesmente se quer só, no embalo do tempo talhado na madeira maciça, a mesma dureza que lhe deu corpo à alma e lhe cristalizou o medo no olhar frio e vazio.
Enquanto se deixa em espera, esconde-se da gente e do mundo remetendo-se ao grito do silêncio autista. Não ouve, não fala, não quer saber de nada, nem de ninguém, limitando-se ao gesto do balanço lento em defensivas programadas, de olhos postos na janela e na porta do seu recanto.
Sabe e sente que está para breve o presente do tão esperado momento. A brisa passou-lhe pela janela e materializou o Senhor que permanece do lado de fora à espera da sua mão aberta.
Sabe que após a batida da porta, lhe esperam uns vincos acentuados e uns quantos fios brancos a acrescentar ao seu olhar vidrado, e sabe também que nunca há-de perder o sereno, mesmo que ao abrir da porta, se veja Maria Boneca morta.


segunda-feira, 6 de maio de 2013

Monstro



































Francisco Goya - "Saturno devorando a sus hijos"

Os monstros, esses bichos medonhos
paridos e criados dos nosso medos instalados,
ganham corpo sobre a mente da gente,
como tornados desenfreados.
E vão conquistando terreno,
destruindo ingenuidades,
destruindo essências,
matando sonhos e semeando charcos
de casulos de aço sem cabeça.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Tornado















Título: Man blind to impending danger
Fotófrafo: Colin Anderson
Colecção: Barnd X Pictures

Consentido para a invasão,
entras por mim adentro
como um tornado desenfreado,
no ponto pronto para devastação.
O peito aperta, o ar aparta,
o coração para e o corpo parte.
Sou pequena demais para a imensidão
deste fado que não consigo controlar.
E esta calma que me fere a alma não acalma,
se tardares muito em chegar.