quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Maria Boneca Morta

Título: Yesteryear
Fotógrafo: Doug Sims
Colecção: Vetta

Nos intervalos, entre o descascar a batata para cozer e pôr os chocos com tinta a grelhar, Maria Boneca entretém-se a brincar.
Enquanto pica a salsa e a cebola para o molho verde, lança o gume mais adentro escalpelizando as digitais dos dedos das mãos. Acende um cigarro no bico do fogão e tira proveito do clarão para cegar os olhos cansados, há já algum tempo a pedirem para serem fechados, e nisto, é hora de pôr a panela com água a ferver.
Na mesa, um prato, um talher, um copo, um guardanapo para colocar no ventre proeminente, grávido há um par de anos. Ao alto uma garrafa de vinho maduro tinto alentejano, ao lado um maciço de cabelos castanhos e a tesoura da poda das roseiras. As cordas vocais e as unhas arrancadas à dentada, essas pobres coitadas já jaziam no ninho dos pardais desde a noite passada. (Voz de encanto só a que canta no canto do recanto da vizinha).
Nem os pés escaparam com vida àquela sangria desmedida, e de perna cruzada em cima da cadeira de baloiço, com uma ponta de carvão em brasa cauteriza a planta dos pés com as letras do seu nome compulsivamente adaptado, Maria Boneca Morta.
Está na hora de se desfazer das provas do seu crime hediondo, principalmente o que carrega dentro do seu corpo. Senta-se à mesa, come, bebe, embebe-se, toma café, fuma mais um cigarro, embrulha-se em sacos de plástico, e no fim, ao som da música de fundo segue solenemente a sua marcha até ao gume da catana afiada sobre a porta de entrada. Já não era sem tempo, finalmente o aborto ia ser parido morto.