segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Ofélia e Fernando do século XXI - Monólogo Solitário























Editora: Assírio e Alvim 
Data de Publicação: 06-2012
ISBN: 9789720793102
Neste livro a ideia comum de que estaríamos perante um namoro platónico, sem réstia de erotismo, desfaz-se por inteiro. Vemos, enfim, surgir um Pessoa diferente do outro lado do espelho. Um Pessoa não só sujeito e manipulador da escrita, mas um Pessoa indefeso, objecto do discurso (e do afecto) de outrem, personagem de uma história real.


Sabes meu querido, estava para te escrever uma carta, mas depois de me teres serrado os tornozelos e arrancado os pés, caí de joelhos ao chão em pose a modos que desamparada. Mas não te preocupes, não é nada a que tu já não me tenhas mantido habituada.
Hoje deixo-te aqui um monólogo, mais um, solitário, e não solidário. Esmolas, ando eu cansada de apanhar nas pedras da calçada da mágoa.
Escrevo-te à medida da insignificância da minha mão deformada e imperfeita atarraxada a um corpo de patinho feio.

Sabes? Ontem estive a ler um livro que sei que também tens. As cartas que foram trocadas por Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz entre 1919 e 1935 de acordo com o acervo disponível e encontrado.

Os meus olhos brilharam e riram a cada carta trocada.
Li-nos em cada palavra, em cada manifestação, em cada manifesto, no trato, no destrato, na dor que os unia, na dor que os separava, na crispação de personalidades e feitos, nos encontros, nos desencontros e até nos afastamentos e retornos.
Ela era bem mais jovem do que ele, e pequenina assim como eu. Mulher atenta, perspicaz, meiga, doce, uma eterna romântica, sempre presente e alongada nas suas missivas intensas e carregadas de amor para lhe dar. Era dotada de um espírito sagaz e aguçado para a época e tinha um sentido de humor refinado e espevitado.
Ele, mais velho, era mais experiente obviamente, um homem de mente atormentada e alma desassossegada. Arredio no tempo, escrevia-lhe quando queria e quando muito bem lhe apetecia. A cada dia menos vezes, a cada dia menos linhas, mas ainda assim, não se inibia de ser cínico quando se irritava com a rapariga. Estás ver meu querido, que lindinhos estamos nós na fotografia. 
Ela queria um companheiro, um marido, uma família. Ele não sabia o que queria, mas não escondia que não era homem digno de si. Apelidava-se de abjecto, de indivíduo miserável, de alienado, meliante e bêbado, e, frisava para que não restassem dúvidas, que o seu trabalho literário permanecia sempre em primeiro plano. E quando queria ser um “querido” para com a sua Ofélia dirigia-se-lhe como Vespa, Víbora, Fera e Feia…Como vês, um cenário por nós bem reconhecido, aqui, hoje e agora claramente invertido, quando afirmas à boca cheia que não sou luva que sirva para calçar a perfeição da tua mão.
E sabias que apesar do trato e do destrato, também havia entre eles desejo e vontades proibidas? Também ele se perdia pelos atributos de Ofélia, desde a boca aos beijos a descerem pelo peito ao corpo inteiro, um tema e um dilema explorado com muita elegância e gracejo, ou não fossem eles, duas pessoas educadas e dois poetas de alma cheia.
Olha, só mais uma coisinha! Eles também se falavam ao telefone, assim como nós, para matarem saudades dos poucos momentos que passavam juntos. Ela até tem uma saída giríssima, quando lhe diz numa das conversas que gostava de se enfiar dentro do fio de telefone para ir ao encontro dele, mas que não podia, porque estava vedado o trânsito de "vespas" pelas linhas telefónicas. Tens que ler, vais-te rir, como eu me fartei de rir; carta de Ofélia datada de 26/09/1929.
Fez-me lembrar a mim, quando ouço a tua voz de trovão e atiço o meu coração num arrepio de emoção, um desejo que partilho sempre que falamos, acho até, que já to tinha dito, mas agora com as novas tecnologias, em vez de ir a rastejar pelo fio adentro para ir ter contigo, teria que ir a voar à boleia das frequências de onda...

Enfim e com tudo isto, li no retrato do passado, o nosso presente.
Eles gostavam-se, gostaram-se, mas nunca ficaram juntos, assim como nós também não.
Quem diria que iria encontrar num livro o nosso espelho com quase 100 anos de idade.