quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Circo de Feras























Título: Woman with a net in her face crying
Fotógrafo: Pawel Wewiorski
Colecção: Flickr

O bilhete do espetáculo
que tinha comprado
trazia a indicação de número ocupado.
De perna cruzada
toma conta do canto prenho da arena,
para poupar espaço de antena
ao corredor da fama.
A novena
das cobaias amestradas
prossegue
em fila indiana
sobre o tapete vermelho,
pavoneando-se a torto e a direito
debaixo d’olho
do canibalismo senhorial.
Na feira das vaidades apregoa-se
à boca cheia a prática
do culto da escova sentimental.
Deixaram de se fabricar milagres
e pedaços de céu azul debruados a ouro,
mas segundo dizem,
ainda fazem
por encomenda,
embrulhos de sonhos roubados
em papel de arame farpado.
Os santos entretanto,
também deixaram de bater à porta,
o Cristo há muito que é morto
e o mundo há muito
que trás o diabo no corpo.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Da desconfiança à crueldade das palavras.

Título: Depressed Girl
Fotógrafo: Bojan Senjur
Colecção: E+

Dás cabo de mim
com essa tua constante desconfiança.
E não me adianta contra argumentar,
ser-te-ei para sempre uma leviana.
A minha imagem
há muito que está deformada
dentro de ti;
sei-me te filha de um deus menor,
defeituosa,
doente,
contaminada,
infectada pela promiscuidade
das tainadas comunitárias,
que passam de mão em mão,
de boca em boca,
de cama em cama.
Pensas mesmo que faço do meu corpo
o roteiro do pecado e do devaneio alheio,
ou que sou um campo de batalha
onde se travam as guerras
da luxúria mundana?
Achas mesmo que sou um batel pejado
de marujos imundos,
ou uma cadela com cio atrás de dono rafeiro?
Enfim, mesmo sem resposta pronta,
olhas-me como se fosse
a estirpe mais baixa da mulher da vida,
de ganho fácil!
Mas putas,
somos todos desde o dia
em que fomos paridos para a vida.
Por vezes justa,
por vezes injusta,
branda ou dura,
ela, a vida,
é a nossa cliente
mais onerosa e assídua.
  

domingo, 19 de janeiro de 2014

Causa Impossível

Título: Get-away Time
Fotógrtafo: Olena Chernenko
Colecção: Vetta

Enjoada da menina
bem comportada,
aquela da pose

de porte de arma,
cheia de peito
e de alma esganada;
largou a besta
em cima da mesa,
bebeu-lhe
a frieza numa só penada
e sem pestanejar
atirou o copo borda fora
contra o vazio da hora morta.
Estilhaçado,
pobre coração
aos pedaços caiu ao chão,
atestando grão a grão
a palma,
e a greta da libertação.
Finalmente,
o tempo já sem corda
tinha batido à porta
para por cobro à demora
de uma espera,
que há muito se ria torta.

domingo, 12 de janeiro de 2014

A Noiva























Título: Crying Bride Holding Lily
Fotógrafo: Peter Zelei
Colecção: Vetta

Excitação é a palavra exacta que descreve o estado de alma, no qual Maria se encontra em preparo para o grande dia da sua vida. Toda ela brilha de alegria, enquanto a costureira dá os últimos retoques no vestido pérola que a calça que nem uma luva.
A euforia é de tal forma desmedida que não se dá conta da tensão que se sente no ar, nem do ar pesado trajado no olhar da sua mãe. Tamanha é a distração que tão pouco toma ouvido nas badaladas do sino da igreja fora de hora e a manhã inteira.
Está quase a bater à porta a hora de conhecer ao vivo o seu futuro marido, o homem a quem está prometida desde o instante em que foi concebida. Dele só tem a imagem que construiu ao longo dos anos por conta das longas trocas de correspondência desenhadas à mão da fina pena em papel de seda, encorpada por uma fotografia amarelecida e queimada pelo sol, que à surdina lhe foi fornecida pela Dona Maria, a governanta da casa e da cozinha. Ela que o conhece bem diz ser um homem de trato complicado, carregado de rigor e austeridade, bem-apessoado e bem abastado também.
O grande momento entra em contagem decrescente, e, antes de sair em procissão nupcial em direcção à igreja, por uma última vez, mira ao espelho a sua condição de menina solteira. Fecha os olhos e em silêncio celebra uma pequena oração aos presentes, alheia.
Pronta, deita pé ao caminho. Nas mãos leva um ramo de lírios brancos e sobre os cachos rolos de cabelo solto, leva o véu e uma coroa de rosas de santa teresinha. Em passo lento, ao ritmo da melodia escolhida, segue a direito sobre o tapete vermelho até ao altar do contentamento.
Incrédula dá um grito exasperado quando os seus olhos se fixam no noivo que se encontra jazido ali mesmo à sua frente, portando um rolo manuscrito na mão esquerda, segundo o pai, o voto final para ela ler e assinar.

“Minha doce Maria, infelizmente, e por motivos alheios à minha vontade, neste fatídico dia, estou exclusivamente de corpo presente. Danos colaterais, minha querida, do pacto que o teu pai fez com o Diabo, ainda tu não eras nascida.
Não resistas, não tens como fugir ao compromisso firmado, quando foi de tua livre vontade a entrega da tua mão ao fado do meu laço.
E para que conste no documento lavrado, doravante tens a teu cargo a anilha que faz de ti minha rainha”. 

A cerimónia foi celebrada e o pacto a sangue selado, e desde esse dia nunca mais ninguém viu a Maria. Segundo reza a lenda, a campa do morto é velado todas as noites por um corvo que carrega na pata esquerda a anilha que fez da Maria, Rainha da Morte.


quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Copo de Agonia























Título: Man Hat Rain
Fotógrafo: Rui Almeida Fotografia
Colecção: Flickr

Em caso de dúvida
persistente,
não fique doente.
Não se agache à cobardia,
deixe o medo no canto do prato
e meta o dedo na ferida.
Siga à risca a prescrição médica,
e faça a pergunta correcta,
de forma  franca e directa,
à pessoa certa.
Certifique-se previamente
das contra-indicações
do mau tempo,
e vá preparado,
nunca se sabe para que lado
está o vento virado!
No fim, abra os cordões à bolsa,
compre um guarda-chuva
e comemore a sorte,
porque não há melhor remédio
que um estalo
de verdade nua e crua.
Se ainda assim,
os sintomas persistirem
não se agaste,
vá até ao bar da insónia
afectiva
e consuma-se
num copo de agonia.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Requiem

Título: Girl With Dolls
Fotógrafo: David Stuart
Colecção: Stone

E a cria foi ali mesmo parida, no chão da cozinha, entre os parasitas e as migalhas ressequidas da comida. Vinha fria, enegrecida, deformada e amputada por conta das farpas da insegurança com que Maria havia sido atingida na arena da desconfiança.
Olhou para o nado desvitalizado, que tinha arrancado à catana de dentro de si, embrulhou-o no manto da sua dor manchado de culpa, aconchegou-o no seu colo esventrado e chorou-o.
E chorou-o e chorou-o, e despediu-se dele e dele, e lamentou a cobardia que tinha parido aquela cria, enquanto se arrastava e ia arrastando aquele peso morto pelo pescoço, por entre flores e ervas daninhas, abrindo portas ao destino.
Entre o fim e o nada, ergueu o filho, beijou-lhe o rosto, atirou com ele para o fundo do poço e pediu um desejo.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Renascer

Título: Macrocosm
Fotógrafo: Olena Chernenko
Colecção: Vetta

Morremos sempre por alguém,
por nós ou para alguém,
e no fim ficam as saudades
e a vontade imensa de renascer,
para que nos matem de novo.