sábado, 31 de maio de 2014

Rosto sem Retrato

Hoje encheu-se-me a alma de mar
Porto, 31 de Maio de 2014

Neste navegar até “ti” perdi-me de mim, só, no meio do oceano sem ter uma mão ou um casco de madeira velha onde me agarrar. Sinto falta de colo, sempre me fez falta desde criança. A minha mãe não me deu alma, deixou-me apenas como herança as presas e as garras onde me firo, onde afio o fio do meu negro feitio, onde me agarro e onde me tenho a salvo deste mundo sem sentido.
É caricato, é irónico! Mas só assim me sinto, no extremo do meu limite, no auge da ruína, na teoria do caos, no trágico, no polémico, no perverso, no manicómio insano da minha mente.
Sou um fosso de mim mesma, sem vergonha de assumir a catástrofe emocional, o desastre, a mão imperfeita atarraxada a um corpo de patinho feio quando me olho ao espelho. Não me sei ser de outra maneira sem me dar inteira, quer na alegria, quer na tristeza, até à última réstia de mim se ver resumida a pó de cinza. Só assim sinto que a vida passa dentro de mim, não atrás nem ao lado como diz um qualquer ditado.
Se sou feliz assim? Sou sim, entregue só a mim e a mim mesma, sempre me conheci assim desde o dia em que me conheci.
Como disse, assumida sem enfiar a cabaça na areia, não sou exemplo, não sou receita, sou espontânea, verdadeira, sou intensa e acima de tudo mais teimosa que eu mesma.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Invicta























Ponte D. Luís I

margem
meu abrigo
lágrima doce
sal marinho
riso menino do rio
Douro corrente
destino
filho triste
carinho
homem generoso
duro rosto traço
vivo
corpo voz grito
alma gente
sangue ardente
hoje amanhã
sempre
alegria genuína
amor paixão vida
desmedida
mão firme pulso forte
cidade invicta
coração do norte

terça-feira, 27 de maio de 2014

Agonia

Título: Trapped
Fotógrafo: Photograph by Devon OpdenDries.
Colecção: Moment Open

Chora
coração apertado,
agonia
em punho cerrado.
Mais frágil que o piar
de um passarinho,
treme assustado
e sozinho
caído do ninho
sem saber
voar.

domingo, 25 de maio de 2014

Era uma vez uma história crónica

Título: China a pig in the pen
Fotógrafo: Keren Su
Colecção: China Span

Era uma vez um casal
aparentemente (a)normal,
entediavam-se bem
e coisa e tal
até ao dia em que a coisa
correu mal,
quando amaldiçoados pela cobiça
do curral.
A pobre da cachopa
ficou gorda que nem uma porca,
o rapaz enojado, perdeu
o tesão do galo
e foi procurar poiso noutro fado.
Fora isso, corrente normal,
está tudo igual na cerca do curral;
o rebanho, as cabras
e os bodes
continuam a ruminar por todo o lado
um caldinho envenenado.

Moral da história, não há…

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Último Beijo

Título: Serious woman with black fan
Fotógrafo: Klubovy
Colecção: Vetta

Habituada a mercadoria
de carga pesada,
abraça mais aquelas palavras,
cruéis e intoleráveis,
que o silêncio da noite,
acolhe no ventre da sua dor.
Cansada do ri palhaça,
deita fora a máscara,
desfaz o penteado,
despe a indumentária de gala
e atira ao rio o fio da navalha
que traz na mala.
Veste a t/shirt,
calça uns jeans,
apanha o cabelo comprido
com um elástico de secretária,
dá corda às sapatilhas
e sem mais demora salta fora
do salão de baile da hipocrisia real.
Mas antes de virar costas
e deitar pé ao caminho
em  sentido contrário,
olha em volta,
enche o peito de ar,
controla o cair das lágrimas,
agarra-se ao sentir
do seu eu
que ainda lhe resta sem mágoa,
e deixa-lhe o último beijo
na pétala de um amor-perfeito.

domingo, 11 de maio de 2014

A Insustentável Leveza do Tempo

Título: What makes her tick?
Fotógrafo: Dawn D. Hanna
Colecção: Moment

Ela conhece as regras do jogo,
os segredos do poço, 
os apertos do medo;
conhece de olhos fechados
trilhos sinuosos,
caminhos armadilhados,
e o gosto amargo do fado riscado.
Mas de que lhe serve tanto conhecimento
se perdeu envergadura
na capacidade de entrega,
ao tempo?!
Ele, por sinal, o único sobrevivente,
lamentavelmente,
tem a fasquia 
de altura equivalente à dela. 

sexta-feira, 9 de maio de 2014























Título: Hangmans noose as necktie
Fotógrafo: Sitade
Colecção: E+

Trajado
no rigor do facto
desde a calça de vinco
ao conceito
do punho engomado,
remata no nó da gravata
um silêncio
de matar à faca.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Ângulo Morto

Título: Woman Sitting in dirt
Fotógrafo: Sarah R. Bloom
Colecção: Moment

Sentou-se no ângulo morto
da memória para dar descanso
ao corpo torto,
tamanha foi a viagem de regresso
lá das terras da Estória.
Enraizada da cabeça ao pé da terra,
deita os olhos na quadrícula da janela
como quem se procura e não se encontra nela.
Foi uma viagem longa,
longa demais, para além do tempo sem fim,
onde se perdeu dela e também se perdeu de mim.
Remeteu-se ao abandono da sensação,
permitiu-se ao esquecimento da razão
alimentando a mente a sangue frio
no vício da voz que lhe calou o grito.
E ali sentada, chegou como saiu,
sem sair do sitio,
sem deixar rasto, sem deixar vestígio,
como se nunca lá tivesse estado,
como se nunca lhe tivesse sido.

domingo, 4 de maio de 2014

Palavras Bonitas

Título: Point of view
Fotógrafo: Christophe Kiciak
Colecção: Moment

Não me dês musica,
nem me enchas
com flores,
enche-me antes
as medidas
com palavras bonitas,
como aquelas que são ditas
no calor do ninho do amor.
Não me importo
que as ditas ainda não ditas,
venham vestidas
a papel de seda
urdido na teia da mentira,
ou mesmo,
que venham montadas
no fio do trapézio malabarista.
O importante é que venham
as artistas,
enfeitadas e bonitas
a tempo de serem ouvidas!
Não me dês musica,
nem me enchas
com flores,
enche-me antes
as medidas
com palavras bonitas,
ainda que venham
desenhadas à mão da fina pena
extraída da asa iludida.


quinta-feira, 1 de maio de 2014

O lado avesso da porta























Título: Portrait of Woman in Desert
Fotógrafo: Vladimir Piskunov
Colecção: E+

A porta é um mero elemento de charneira
entre o que está do lado de dentro
e o que está do lado de fora.
Do lado de dentro
estou eu e eu mesma à espreita,
de olho fechado posto no lado avesso da porta,
onde moram os sonhos,
as fantasias,
as sombras, os mistérios,
os mitos e as mentiras.
O telhado tradicional, por sua vez,

vai-se mantendo em constante manutenção
assegurando a estabilidade
robusta da minha razão.
Razão essa, que me mantém de pé firme
bem amarrado ao chão,
mas com um pequeno grande senão;
corta-me as asas,
arranca-me as guelras,
seca-me as veias,
mata-me o lado insano,
e eu que preciso tanto dele
para me manter lucida neste mundo de loucos.